Jean Wyllys:
"Como a jornalista cafona se sentiria se um grupo de pessoas, fazendo
"justiça com as próprias mãos", decide linchá-la por sua apologia ao
linchamento?"
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-subsombra-desumana-de-raquel-sheherazade-8276.html
por Jean Wyllys — publicado 06/02/2014
20:34, última modificação 06/02/2014 20:56
O garoto acorrentado ao poste e a apresentadora do
SBT, que defendeu a ação
"A mais triste nação, na época
mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores".
Esta frase é, na verdade, um verso de
Caetano Veloso, que, no início na década de 1990, indignado com uma onda de
linchamentos no Brasil ainda subdesenvolvido, escreveu a canção "O cu do
mundo". Recorrendo ao fato linguístico de que palavra "cu" poder
ser classificada como adjetivo ou substantivo comum, Veloso canta que o Brasil
, "cu do mundo" (periferia das potências e dos centros de decisão da
política internacional), seria, pela frequência com que linchamentos acontecem
por esse sítio, um "cu" (no pior sentido desse "adjetivo esdrúxulo":
sujo, fedido, péssimo, insuportável).
O linchamento é - imagino que todos
saibam disso - a violência dura (espancamentos e assassinatos) perpetrada por
um grupo de pessoas como punição contra um indivíduo acusado de ter praticado
algum delito, mas sem o devido processo judicial e em detrimento dos direitos
fundamentais de toda pessoa humana garantidos pelas leis.
Há uma controvérsia sobre a origem da
palavra "linchamento". Alguns autores a atribuem ao coronel Charles
Lynch, que fazia "justiça com as próprias mãos" durante a guerra de
independência dos Estados Unidos. Outros, porém, defendem que a palavra é
derivada do fato de o capitão William Lynch, do estado da Virgínia, ter
mantido, por volta de 1780, um grupo de pessoas que, à margem da lei, punia com
morte violenta os inimigos.
Em ambos os casos, a violência
praticada pelo grupo contra os delinquentes reais ou supostos estava eivada de
ódio racial contra os índios e os negros. Aliás, esses grupos foram o embrião
da Ku Klux Klan.
Duas décadas depois daquele desabafo em
forma de canção feito por Caetano Veloso, a "subsombra desumana dos
linchadores" a que ele se refere volta a escurecer o céu de nosso frágil
estado democrático de direito.
Em Goiânia, moradores de rua são
exterminados com requintes crueldade por "justiceiros" anônimos
"cansados" dos pequenos delitos ou simplesmente da feiura que os
sem-teto trazem à paisagem urbana (anônimos porque não há, por parte das
polícias locais, boa vontade de empreender uma investigação rigorosa e eficaz
que os identifique e possibilite que sejam punidos na forma da lei).
Na capital paulista, além dos moradores
de rua, principalmente aqueles entregues ao abuso do crack, são vítimas de
"justiceiros" também homossexuais e travestis, abatidos por
espancamentos e/ou assassinatos cada vez mais violentos.
No Rio de Janeiro, capital, homeless
pardos, malandros pretos, ladrões mulatos e outros cidadãos quase pretos
considerados "suspeitos" por causa da cor da pele e/ou do jeito que
se vestem que costumam frequentar o Aterro do Flamengo foram alvos de uma
reação violenta de "justiceiros" locais, que, para mostrar o quanto
desdenham das garantias jurídicas e o quanto se consideram acima das leis,
ataram a um poste, com uma trava de bicicleta, um dos malandros pretos
espancados (um adolescente despido de sua roupa e dignidade).
A reação clara e inequivocamente
criminosa dos "justiceiros" e linchadores cariocas à presença da
população marginal no parque que consideram seu ganhou, de imediato, o aval e o
estímulo (sim, estímulo!) da jornalista Raquel Sheherazade, âncora do Jornal do
SBT, emissora que ocupa o segundo lugar em audiência.
Sheherazade não só defendeu abertamente
o linchamento do menor como afirmou que as pessoas "de bem" não têm
outra resposta para o "estado de violência" que não a "justiça
com as próprias mãos" (claro que ela estava se referindo apenas aos
delitos praticados pelos pobres e negros, já que defendeu e justificou a
delinquência do astro pop Justin Bieber), desprezando o - e debochando do -
papel das polícias, do Ministério Público, do poder judiciário e dos defensores
dos Direitos Humanos na mediação dos conflitos em sociedade.
Acontece que, sendo o linchamento ou
justiça por conta própria crimes previstos no nosso código penal, a apologia e
o estímulo a estes crimes também constituem um crime! E aí?
Embora o nome de Raquel Sheherazade
circulasse por textos de ativistas indignados com suas opiniões tão medíocres
quanto reacionárias, eu, até então, não tinha dado muita atenção a ela; nem
mesmo quando me citou de maneira negativa em sua fervorosa defesa da
permanência do deputado pastor Marco Feliciano na presidência da CDHM da
Câmara, apesar das acusações de racismo e homofobia que pesavam sobre ele.
Para mim, até então, Sheherazade não
passava de uma mulher cafona, fundamentalista religiosa, limitada intelectualmente
e de repertório cultural estreito - uma espécie de Afanásio Jazadji de tailleur
- que caiu nas graças de Sílvio Santos. Não tinha, portanto, motivos para lhe
dar atenção. Agora, porém, depois de sua apologia ao linchamento e da boa
recepção que esta teve nas redes sociais, não posso mais ignorá-la: preciso
enfrentá-la!
O elogio de Sheherazade e seus
simpatizantes aos "justiceiros" do Aterro do Flamengo materializa a
velha tendência de se buscar, no que diz respeito à segurança pública,
"soluções biográficas para contradições sistêmicas", como diz o
sociólogo alemão Ulrich Beck. Isso quer dizer que a jornalista e sua gente
pertencem à tradição que trata a delinquência fruto das históricas desigualdade
e injustiça sociais com métodos de tortura ou execução sumária dos
delinquentes, ignorando o sistema que os produzem.
Se nos encontramos num "estado de
violência", como ela diz, é também porque seu discurso e o de boa parte da
mídia associam pobreza e negritude à criminalidade, desumanizando as populações
das periferias e as expulsando da comunidade moral.
Em sua visão de mundo estreita e
sustentada em preconceitos, Sheherazade e os que lhe aplaudem, consideram a
defesa dos Direitos Humanos dos pobres e dos marginais um estorvo para a
segurança do "cidadão de bem". Ora, isso não passa de estupidez!
Esses direitos, em sua formulação
consagrada internacionalmente, são de todos e todas e não apenas de Raquel
Sheherazade e sua turma. Os direitos à vida e à integridade física, bem como o
direito à defesa num julgamento justo, não podem ser entendidos como
privilégios de gente branca que mora em bairros privilegiados e tem renda para
o consumismo - que é como Sheherazade os entendem. Esses direitos são também
daquele adolescente espancado e atado a um poste por uma trava de bicicleta!
Como a jornalista cafona se sentiria se um grupo de pessoas, fazendo
"justiça com as próprias mãos", decide linchá-la por sua apologia ao
linchamento? Sheherazade deveria refletir sobre essa pergunta antes de estimular
a barbárie mais uma vez.
Desacreditar o Estado Democrático de
Direito em cadeia nacional para defender linchamento de um adolescente negro,
pobre e supostamente delinquente é apodrecer nossa época; é fazer, do Brasil, o
cu do mundo!
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