Reflexões sobre a guerra de Israel contra o povo palestino e suas possíveis consequências regionais e globais
Por Michael Pröbsting, Corrente Comunista Revolucionária Internacional (CCRI), 11 de outubro de 2023, www.thecommunists.net
Conteúdo
Nota introdutória
Israel: um estado colonizador em crise
Sionistas planejam uma nova Nakba
Transformação em uma guerra regional?
Netanyahu e os EUA "mudarão o Oriente Médio"?
Poderia a revolta de Gaza desencadear uma nova onda revolucionária?
Marxismo, Hamas e a derrota de Israel
A revolta de Gaza e a esquerda
Táticas revolucionárias
Nota introdutória: No artigo a seguir, elaboraremos algumas reflexões sobre a revolta palestina em Gaza e suas possíveis implicações para a situação global. É claro que temos plena consciência de que essas teses são necessariamente de natureza muito provisória, incompleta e especulativa, dado o estágio muito inicial e a espetacularidade extraordinária e sem precedentes dessa revolta. Portanto, é possível, até mesmo provável, que a CCRI desenvolva ou corrija essa ou aquela hipótese no decorrer de eventos futuros nas próximas semanas e meses. No entanto, a importância desse levante obriga os marxistas a pensar sobre possíveis desenvolvimentos futuros e suas consequências para a estratégia e a tática na luta dos trabalhadores e dos oprimidos.
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1. A Revolta de Gaza é outro ponto de virada na situação mundial de importância não menor do que a invasão da Ucrânia por Putin em fevereiro de 2022. É verdade que ela não envolve diretamente uma grande potência (como a Rússia), já que Israel é mais um estado imperialista menor. No entanto, envolve indiretamente as grandes potências, como pode ser visto nas agitadas atividades diplomáticas internacionais, bem como na decisão do Pentágono de enviar o porta-aviões USS Ford para o Mediterrâneo Oriental. Além disso, é muito provável que isso se transforme em uma guerra prolongada com profundas consequências políticas e econômicas para toda a região do Oriente Médio e para o mundo todo. Pode provocar uma nova onda de lutas populares e dos trabalhadores na região e fora dela e pode resultar em rupturas decisivas nas relações entre os Estados. Por todos esses motivos, consideramos a Revolta de Gaza como um evento histórico.
Israel: um estado colonizador em crise
2. Já em nossa primeira declaração, chamamos a atenção para o caráter extraordinário e sem precedentes desse levante. Os ataques ousados e decisivos do Hamas contra o inimigo sionista chocaram e humilharam Israel. As posições do chamado quarto exército mais forte do mundo foram invadidas por "guerrilheiros com Kalashnikovs", como disse um comentarista burguês. Eles ocuparam bases militares israelenses, campos de colonos e se infiltraram em cidades como Sderot e Ashkelon. E o tão elogiado sistema " Domo de Ferro" se mostrou impotente contra os foguetes de Gaza. Essa operação permitiu que as forças de resistência destruíssem vários tanques e equipamentos militares israelenses e fizessem mais de 100 israelenses (soldados e civis) prisioneiros (com o objetivo depois fazer troca por milhares de prisioneiros palestinos). Como resultado, o prestígio de Israel no Oriente Médio claramente sofreu um golpe. Isso encorajará as massas e, ao mesmo tempo, fará com que os governantes árabes duvidem dos benefícios da normalização com o Estado sionista.
3. O governo de Netanyahu certamente tentará usar a guerra para atingir vários objetivos. Ele quer aniquilar a resistência palestina e provocar uma nova Nakba, espera fortalecer sua posição interna e busca forçar os EUA a intervir ativamente ao seu lado em uma tentativa de "mudar o Oriente Médio". Vamos explicar brevemente. É bem sabido que o governo de extrema direita de Netanyahu e seus loucos ultra-sionistas querem "resolver a questão palestina" provocando uma nova Nakba. A escalada dramática da violência dos colonos contra os palestinos, o número crescente de incursões assassinas do exército israelense em Jenin, Nablus e outras cidades da Cisjordânia, as repetidas agressões e a dessegregação da Mesquita de Al Aqsa - o terceiro local mais sagrado do Islã - refletem uma estratégia sionista que visa à aniquilação do povo palestino. É preciso ter sempre em mente que Israel é um pequeno estado de colonos, odiado pela população nativa, e que vive em um ambiente hostil de países árabes e muçulmanos vizinhos. Como vivemos em um período histórico de crise, catástrofe e guerras, marcado por instabilidade global, rivalidade acelerada entre grandes potências e revoltas revolucionárias, a posição desse Estado colonizador está se tornando cada vez mais frágil. Isso é ainda mais verdadeiro porque o apoiador tradicional de Israel - o imperialismo norte-americano - sofreu um declínio como única potência hegemônica, enquanto novas grandes potências (China e Rússia) surgiram. A impressionante crise interna, na qual o governo de Netanyahu enfrentou protestos em massa semanais desde janeiro de 2023 pela oposição sionista liberal, é uma expressão dessa crise do Estado de Israel. A revolta de Gaza piorou esse desenvolvimento, que é uma crise existencial não apenas do governo, mas também do Estado dos colonos como tal.
Sionistas planejam uma nova Nakba
4. Isso significa que o Estado israelense tentará, na verdade deve tentar, "resolver o problema de Gaza" de uma vez por todas. Se não conseguir poderá abrir o período de agonia de morte do Estado sionista. Portanto, a lógica objetiva dos acontecimentos leva Israel a tentar matar o maior número possível de combatentes da resistência, a destruir o máximo possível e a expulsar centenas de milhares de palestinos. Esse é o significado da proclamação de Netanyahu de transformar a Faixa de Gaza em uma "ilha deserta" e esse é o motivo por trás da declaração do tenente-coronel Richard Hecht, porta-voz-chefe do exército israelense, de que os palestinos que fogem dos ataques aéreos na Faixa de Gaza devem se dirigir ao Egito. No entanto, é difícil imaginar que Israel possa conseguir isso sem invadir e conquistar o enclave em uma guerra urbana extremamente sangrenta. E, depois disso, teria que manter a faixa ocupada por um longo período de tempo. Não é preciso dizer que esse esforço é extremamente arriscado para Israel e quase certamente provocará uma profunda agitação no mundo árabe e muçulmano e enterrará o projeto de reconciliação de Israel com os países árabes (a chamada "normalização").
5. Em resumo, Netanyahu espera "resolver" a questão de Gaza por meio de um programa de aniquilação e, assim, também salvar seu governo em crise. No entanto, como nossos camaradas da Liga Socialista Internacionalista-LSI na Palestina ocupada têm apontado repetidamente, a crise do governo israelense não é causada simplesmente pelos problemas de Netanyahu com o judiciário, mas reflete uma crise fundamental da sociedade israelense e suas divisões étnicas, sociais e religiosas internas. O movimento de colonos de extrema direita e o setor sionista religioso por trás dele não querem apenas expulsar os palestinos. Eles também querem se livrar dos judeus liberais em Israel. Como Lily Galili, uma jornalista israelense, apontou recentemente, esses fanáticos sionistas têm "um novo alvo: Tel Aviv" (que é habitada principalmente por judeus liberais). Sem dúvida, essas forças tentarão usar a guerra para fortalecer sua posição. Não se pode descartar a possibilidade de que tenham sucesso por um certo período, embora isso esteja longe de ser uma certeza. No entanto, a longo prazo, essas divisões entre diferentes grupos de judeus israelenses só serão exacerbadas.
6. Poderia o Estado sionista conseguir impor uma nova Nakba expulsando centenas de milhares ou milhões de pessoas de Gaza e da Cisjordânia? Esse cenário terrível não pode ser excluído. No entanto, mesmo esse desenvolvimento não poderia resultar em uma estabilização do Oriente Médio, pois os fatores fundamentais de instabilidade global e regional - a Depressão Global da economia mundial capitalista, a rivalidade acelerada entre as Grandes Potências, as tensões internas explosivas cheias de raiva popular contra os governantes - permanecem em vigor. Essa é a diferença decisiva em relação à situação após a Nakba de 1948 e a criação do Estado de Israel. Naquela época, o mundo entrou em um período de grande expansão econômica e relativa estabilidade. Hoje é o contrário.
7. Muitos comentaristas compararam essa revolta ao ataque surpresa do exército egípcio na guerra de outubro de 1973. Embora haja um elemento de verdade nessa analogia, essa contraofensiva palestina é muito mais chocante para Israel, pois é uma rebelião de uma população de gueto contra um Estado que já está em uma crise histórica com uma sociedade profundamente dividida. Isso nos leva a outra questão importante a ser analisada: quais serão os efeitos da revolta de Gaza sobre o moral da sociedade israelense em geral e do exército em particular? Claramente, o governo de Netanyahu está tentando mobilizar uma onda de belicismo e chauvinismo. Entretanto, é improvável que essa mobilização militarista possa eliminar as causas fundamentais que enfraqueceram e dividiram a sociedade israelense nos últimos anos. Além disso, não se deve esquecer que a sociedade israelense escapou da expansão da decadência e da desmoralização que caracterizaram todo o mundo ocidental nas últimas décadas. Quantos soldados israelenses estão dispostos a sacrificar suas vidas por sua terra natal? Eles são "heróis patrióticos" quando se sentam atrás de uma tela de vídeo à distância, de onde podem direcionar alguns drones ou mísseis. Mas vamos ver o quão corajosos eles serão quando entrarem na Cidade de Gaza! Compare isso com o heroico povo palestino em Gaza e na Cisjordânia! Em geral, o exército israelense passou por situação semelhante ao dos EUA: eles são muito bons em bombardeios e em todos os tipos de guerra de alta tecnologia, mas não tão bons quando se trata de batalhas terrestres duradouras em que o moral de seus soldados conta. Lembremos como o exército israelense foi derrotado pelo Hezbollah na guerra do Líbano no verão de 2006 e como foi cauteloso ao invadir Gaza nas últimas quatro guerras! Em suma, será importante observar o quão forte será o moral da sociedade israelense durante a guerra atual.
Transformação em uma guerra regional?
8. Uma das questões mais importantes é se outras forças, como o Hezbollah no Líbano ou as milícias pró-iranianas na Síria e no Iraque, se juntarão à luta e, assim, transformarão a guerra de Gaza em uma guerra regional. É evidente que essa transformação levaria Israel aos limites de sua capacidade militar. O exército israelense já está no limite de sua capacidade. Como apontou um grupo de veteranos de combate israelenses, o exército não estava preparado para proteger seus civis na fronteira de Gaza porque estava preocupado em proteger os assentamentos israelenses na Cisjordânia. É por isso que os EUA enviaram seu Grupo de ataque de porta-aviões para o Mediterrâneo Oriental e é uma possibilidade realista que eles intervenham diretamente na guerra nesse caso. Isso, por sua vez, teria consequências explosivas para toda a região e, de fato, globalmente. Nos últimos anos, Washington sempre quis se concentrar na região do Pacífico para manter seu principal rival, o imperialismo chinês, à distância. Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, ela teve que redirecionar seus recursos e, se uma terceira frente se abrir agora no Oriente Médio, isso levará até mesmo as poderosas capacidades do Pentágono aos seus limites!
9. No momento, parece que a liderança do Hezbollah não está entusiasmada em participar da guerra. Vergonhosamente, seus recursos foram bastante reduzidos por sua intervenção reacionária na Síria, ao lado da tirania de Assad contra o levante revolucionário do povo. Entretanto, o Hezbollah certamente está sofrendo uma enorme pressão tanto de sua própria base de apoiadores quanto de Israel. O Hamas conclamou outros a se juntarem a essa batalha decisiva. Há uma forte pressão das "ruas árabes" para não deixar os palestinos em paz e isso aumentará mais se o exército israelense invadir Gaza. No final das contas, a oposição ao Estado sionista e a solidariedade com o povo palestino têm sido a marca registrada sobre a qual o Hezbollah construiu seu prestígio ao longo das décadas. Sua reputação já foi prejudicada por seu apoio reacionário a Assad. Se ele não agir agora, seu prestígio será ainda mais prejudicado. Por esse motivo, o Hezbollah permite que facções palestinas sob sua proteção enviem foguetes para Israel, e seus combatentes estão se envolvendo em uma guerra de pequena escala contra Israel, com alguns bombardeios de morteiro e ataques a posições israelenses. A escalada resultante, na qual Israel mata militantes do Hezbollah, pode facilmente aumentar em breve e levar à abertura de uma nova frente.
Netanyahu e os EUA "mudarão o Oriente Médio"?
10. Netanyahu disse que quer "mudar o Oriente Médio". Além de "resolver o problema da Palestina", ele espera obter uma vitória tão decisiva e enfraquecer tanto o Irã e seus aliados que isso "forçará" a Arábia Saudita e outros estados árabes a "normalizar" as relações com Israel e a participar de uma aliança com Tel Aviv na posição de liderança. Primeiro, é preciso dizer que Israel é muito pequeno e muito fraco para "mudar o Oriente Médio". Isso só poderia ser feito com a ajuda do imperialismo norte-americano. Obviamente, Netanyahu sabe disso e nos parece que ele tem um plano para arrastar os EUA para a guerra a fim de atingir esse objetivo. A própria Casa Branca certamente não tinha esse objetivo, pois queria se concentrar na China e na Rússia. De fato, a Casa Branca foi completamente surpreendida pela nova guerra de Gaza. Há apenas algumas semanas, o assessor de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, declarou que a região "está mais calma hoje do que esteve em duas décadas". (Uma declaração notável para os livros de história!) Entretanto, com a eleição presidencial pela frente, Biden não pode se dar ao luxo de parecer tão fraco ao apoiar seu aliado próximo, ainda mais porque os republicanos usarão impiedosamente cada fracasso da administração para sua própria campanha eleitoral.
11. Essa intervenção dos EUA no Oriente Médio forçaria a Casa Branca a repensar suas prioridades. A Casa Branca não tem condições de ter uma presença forte no Pacífico, na Europa Oriental e no Oriente Médio ao mesmo tempo. Isso estaria além de sua capacidade militar. Washington não pode e não vai deixar de priorizar sua tarefa estratégica mais importante: manter a China sob controle. Portanto, se os EUA forem forçados a enviar munição, armas e forças militares para o Oriente Médio, provavelmente reduzirão seu apoio à Ucrânia (que, de qualquer forma, é impopular entre os republicanos trumpistas). Isso poderia acelerar o sentimento já existente entre a elite política de Washington de pressionar por uma pacificação da guerra ucraniana e impor negociações que resultariam em concessões substanciais a Putin. Tal desenvolvimento, como apontamos nos artigos da CCRI sobre a guerra ucraniana, destacaria o quão desastroso foi para a Ucrânia o fato de o governo de Zelensky ter contado fortemente com o apoio financeiro e militar do Ocidente em sua justa guerra de defesa nacional contra o imperialismo russo.
12. Poderia Israel, com a ajuda dos Estados Unidos, "mudar o Oriente Médio"? Isso parece altamente improvável. A principal razão para isso é o declínio político e econômico dos EUA e a ascensão da China e da Rússia. A política petrolífera da Arábia Saudita (em estreita coordenação com Moscou) contra os interesses de Washington, a adesão da Arábia Saudita, do Egito e dos Emirados Árabes Unidos ao BRICS, a entrega de armas do Egito à Rússia, o papel dos Emirados Árabes Unidos em contornar as sanções ocidentais contra a Rússia: tudo isso mostra que os Estados Unidos não dominam mais o Oriente Médio. E Washington não pode mudar esses fundamentos políticos e econômicos com o envio de um único Porta-Aviões. Eles teriam que enviar forças muito maiores, o que enfraqueceria muito a presença militar dos EUA em outras frentes. Nem Israel nem os Estados Unidos estão em uma posição tão dominante quanto estavam há algumas décadas. Hal Brands, um conhecido colunista da Bloomberg, reconheceu essa mudança no equilíbrio de poder em um artigo recente. "No entanto, a guerra nessa revolta também faz parte de uma crise de segurança global mais ampla e cada vez mais intensa". Ele conclui de forma pessimista que "a Pax Americana do período pós-Guerra Fria acabou. Durante uma geração após 1991, o mundo experimentou níveis historicamente baixos de competição geopolítica e ideológica, principalmente porque Washington e seus aliados tinham vantagens decisivas. Isso está mudando à medida que os atores revisionistas - principalmente a China, a Rússia e o Irã - procuram reduzir o poder dos EUA e criar suas próprias esferas de influência. O ressurgimento de grandes potências autocráticas, por sua vez, está intensificando as pressões sobre a democracia global. A política mundial está voltando ao normal, e a política mundial costuma ser um negócio feio e violento.
Poderia a revolta de Gaza desencadear uma nova onda revolucionária?
13. Os cenários de guerra mais prováveis são os seguintes. Se Israel - apesar de sua declaração de guerra e da mobilização total de todas as forças militares - não conseguir derrotar o Hamas de forma decisiva, isso seria fundamental para uma vitória histórica da resistência palestina. Isso encorajaria imediatamente as massas árabes e provocaria uma nova onda de revoltas revolucionárias. Além disso, essa vitória aprofundaria a crise interna de Israel e poderia abrir seu período de agonia mortal. Da mesma forma, esse evento daria um golpe decisivo no processo de "normalização". Por fim, enfraqueceria de forma decisiva a posição dos EUA no Oriente Médio e fortaleceria seus rivais imperialistas do Leste. No caso de uma vitória israelense, Tel Aviv e Washington teriam ganhado algum tempo. Mas nada mais, porque todos os fatores políticos e econômicos fundamentais, a aceleração das contradições entre as classes apontam para uma crescente instabilidade e luta de classes. Essa vitória israelense seria comparável às vitórias dos EUA no Afeganistão e no Iraque em 2001 e 2003: "vitórias" que logo resultaram em novas rebeliões armadas e lutas de guerrilha e, por fim, em derrota.
14. No entanto, também poderemos testemunhar em breve uma onda de mobilizações em massa pró-Palestina em todo o mundo e, principalmente, no Oriente Médio. O Hamas convocou protestos em todo o mundo árabe em apoio aos palestinos. Khaled Meshaal, líder do escritório do Hamas na diáspora, emitiu uma declaração dizendo: "[Nós] devemos ir às praças e ruas do mundo árabe e islâmico na sexta-feira, a sexta-feira da inundação de Al Aqsa. Quanto mais Israel bombardear impiedosamente o povo palestino em Gaza, quanto mais o Hamas e outras facções conseguirem resistir à agressão israelense, quanto mais os governos árabes e muçulmanos permanecerem passivos, mais forte será a raiva popular, que poderá explodir mais cedo ou mais tarde. O Hamas está dando um exemplo de luta determinada contra o opressor. Esse exemplo fará com que Abbas e todos os líderes árabes que dançam a dança do ventre pareçam ainda mais claramente o que são: lacaios covardes do imperialismo. Em outras palavras, um golpe contra Israel é também um golpe contra os líderes árabes que estabeleceram relações políticas e econômicas com Israel. Esse golpe poderia provocar uma nova onda de lutas de massa no Egito, na Jordânia, no Marrocos, em alguns estados do Golfo e em outros países.
Marxismo, Hamas e a derrota de Israel
15. O que os marxistas dizem sobre as táticas do Hamas na luta pela libertação da Palestina? Como sempre enfatizamos, a CCRI - como uma organização comunista revolucionária - luta por um programa muito diferente do Hamas, que é uma organização islâmica (pequeno-burguesa). Como tal, o Hamas quer construir um estado capitalista com cores religiosas. Atualmente, ele também adota uma postura oportunista de apoio ao regime dos mulás iranianos e à tirania de Assad.
16. Em contrapartida, a CCRI defende uma revolução socialista da classe trabalhadora e das massas oprimidas no Oriente Médio. Defendemos a destruição do Estado sionista, o direito incondicional de retorno dos refugiados palestinos e o estabelecimento de um único Estado palestino do rio ao mar, que será uma república democrática e secular de trabalhadores e camponeses pobres como parte de uma federação socialista de toda a região. Nesse Estado, os judeus serão uma minoria com plenos direitos religiosos e culturais. Essa estratégia também tem como objetivo a derrubada dos governantes árabes e persas pelas massas populares.
17. Como nossos companheiros na Palestina ocupada enfatizaram muitas vezes, a classe trabalhadora israelense faz parte de um estado colonial e está vinculada a ele com inúmeros privilégios. Essa classe trabalhadora israelense não pode desempenhar um papel de vanguarda ou mesmo um papel igual em um processo revolucionário como esse. Não, a liderança terá de vir da vanguarda das massas árabes. Somente em um período de crise existencial será possível separar uma parte da classe trabalhadora judaica israelense do sionismo para se juntar aos seus irmãos e irmãs árabes. Essa crise existencial pode ser provocada por uma poderosa Intifada na região e/ou por uma derrota militar decisiva de Israel contra as forças palestinas e árabes. Uma derrota israelense frente ao Hamas pode nos aproximar significativamente desse cenário.
18. Os governos e a mídia burguesa dos países ocidentais estão tentando criar uma imagem histérica do Hamas como uma "organização terrorista". Isso é um completo absurdo. O Hamas foi o maior partido nas últimas eleições livres entre o povo palestino, governa Gaza desde 2007 e é a principal força na luta pela libertação. O Hamas é uma parte legítima da resistência palestina, semelhante ao papel desempenhado pela OLP antes do acordo de Oslo ou do ANC antes de 1994 (não nos esqueçamos de que as potências ocidentais também denunciaram essas organizações como "terroristas" - antes de se tornarem "parceiros respeitados da comunidade internacional").
19. Isso não significa que apoiamos o programa ou a estratégia burguesa do Hamas. Tampouco aprovamos todas as suas táticas. Como marxistas, não defendemos táticas terroristas contra civis. Portanto, não assumimos responsabilidade por todas as suas ações. No entanto, é preciso ter em mente que, em Israel, muitos "civis" são colonos armados em kibutzim que desempenham um papel de vanguarda na agressão sionista contra o povo palestino. De qualquer forma, é uma verdade bem conhecida que os oprimidos sempre têm armas mais primitivas do que os opressores. Portanto, enquanto o Estado sionista possui os meios para matar civis palestinos com mísseis de alta tecnologia e matá-los de fome por meio do bloqueio, o Hamas e outras facções de resistência têm de lutar com meios mais primitivos, ou seja, menos precisos. Independentemente da histeria ocidental contra o Hamas, o fato é que, de acordo com o Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários, entre 2008 e 31 de agosto de 2023, 6.407 palestinos e apenas 308 israelenses foram mortos. Em outras palavras, 20 vezes mais palestinos do que israelenses foram mortos nos últimos 15 anos. Então, quem é o terrorista?
20. Karl Marx comentou certa vez sobre o levante indiano contra o domínio colonial britânico em 1857, no qual os rebeldes também cometeram muitas atrocidades: "Por mais infame que seja a conduta dos sipaios, ela é apenas um reflexo concentrado da conduta da Inglaterra na Índia, e não apenas durante o período de fundação de seu império oriental, mas também durante os últimos dez anos de sua longa dominação. Para caracterizar essa dominação, basta dizer que a tortura foi uma instituição orgânica de sua política fiscal. Na história da humanidade, existe algo chamada retribuição; e a regra da retribuição histórica é que seus instrumentos são forjados pelos próprios algozes e não pelas vítimas". A corajosa coalizão de 34 organizações estudantis da Universidade de Harvard emitiu uma poderosa declaração pró-palestina em 10 de outubro, na qual "considera o regime israelense totalmente responsável por toda a violência que está ocorrendo" entre palestinos e israelenses após décadas de ocupação, acrescentando que "o regime de apartheid é o único culpado". Isso é absolutamente correto! Foi o estado de apartheid israelense, e não a resistência palestina, que introduziu a barbárie e o terrorismo. Israel agora está provando do seu próprio remédio!
21. Por fim, como já dissemos, a CCRI não concorda com todas as táticas do Hamas e não defende ataques terroristas contra civis. No entanto, não podemos perder nosso senso de proporção e nos adaptar à lógica hipercrítica da mídia ocidental. O verdadeiro terrorista é o Estado de Israel, e qualquer tática terrorista do Hamas contra civis é apenas um elemento subordinado que em nada altera o caráter justo da guerra de libertação da resistência palestina. Hoje, o Hamas é a principal força da luta de resistência do povo palestino. Estamos incondicionalmente ao lado dessa luta e, portanto, apoiamos a luta do Hamas - apesar de nossas críticas políticas - contra o Estado de Israel.
A revolta de Gaza e a esquerda
22. A Revolta de Gaza criará uma nova linha de demarcação entre as organizações autoproclamadas progressistas e socialistas. Alexandria Ocasio-Cortez, uma proeminente "socialista" nos EUA que é membro da Câmara dos Deputados pelo Partido Democrata pró-sionista, denunciou vergonhosamente uma manifestação pró-palestina em Nova York como "antissemita". O LINKE alemão tem uma ala forte que apoia explicitamente Israel. E os estalinistas e populistas de esquerda espanhóis (PCE, IU, Sumar) fazem parte de um governo que apoia a linha pró-israelense da União Europeia. Claramente, esses são traidores pró-sionistas!
23. Haverá aqueles que declaram solidariedade geral com o povo palestino, mas se recusam a ficar do lado das forças de resistência (atualmente lideradas pelo Hamas) contra o exército israelense. Essa posição tem sido defendida por organizações como a TMI de Alan Woods, a CWI de Peter Taaffe ou a ISA. Trata-se, na verdade, de um tipo de "neutralidade", uma política de abstencionismo reacionário (semelhante à posição deles sobre a guerra na Ucrânia).
24. Outros, como a CCRI, estão aberta e claramente do lado da resistência palestina. Entretanto, também é preciso fazer uma distinção entre os apoiadores da resistência palestina. Há aqueles - geralmente de origem estalinista ou chavista - que estão do lado da resistência palestina porque ela luta contra o inimigo ocidental. Ao mesmo tempo, eles simpatizam ou até apoiam o regime de Assad contra a revolução síria ou Putin contra a Ucrânia. Em contraste, a CCRI e outros socialistas genuínos apoiam todas as lutas dos povos oprimidos, tanto contra as potências (pró-)ocidentais quanto contra as potências (pró-)orientais. Será fundamental criar um bloco de socialistas que se oponha a todas as potências imperialistas e, ao mesmo tempo, assuma uma postura consistente pró-Palestina, anti-Assad e pró-Ucrânia.
25. É claro que é preciso estar ciente de que também há dificuldades. Entre os ativistas politicamente conscientes das massas árabes e dos movimentos de solidariedade internacional, há uma mistura de sentimentos. Aqueles que têm participado ativamente das lutas contra Assad ou contra a invasão de Putin tendem a hesitar em participar de um movimento de solidariedade que apoia uma luta liderada pelo Hamas (que expressou publicamente simpatia por Assad). E, da mesma forma, entre aqueles que apoiam a atual revolta de Gaza, há muitos que hesitam ou até mesmo não querem ficar do lado do povo sírio ou ucraniano. Esses são desafios inevitáveis em um período de tensões cada vez maiores entre as potências imperialistas do Leste e do Oeste. A tarefa dos socialistas genuínos é explicar que precisamos construir um independente terceiro campo de luta da classe trabalhadora e dos povos oprimidos para nos opormos a todas as grandes potências.
Táticas revolucionárias
26. Como afirmamos na primeira declaração da CCRI sobre a Revolta de Gaza, apoiamos de todo o coração a luta da resistência palestina contra o Estado de Israel. Entretanto, não damos apoio político aos líderes dessas forças (como o Hamas). Além disso, é preciso exigir que a administração palestina de Mahmoud Abbas (Cisjordânia) interrompa imediatamente sua colaboração com o Estado de Israel e distribua armas à população para que ela possa se defender dos assassinos sionistas.
27. Fora da Palestina, é dever urgente do movimento trabalhista e popular internacional mobilizar-se mundialmente em solidariedade ao povo palestino. Todos os governos árabes e muçulmanos que afirmam apoiar o povo palestino devem romper imediatamente todas as relações políticas, econômicas e militares com o Estado sionista. Eles devem enviar ao povo palestino em tudo o que ele precisa, desde ajuda médica até ajuda militar.
28. Nas metrópoles imperialistas - principalmente na América do Norte e na Europa Ocidental - os socialistas devem apoiar todas as atividades que façam enfraquecer o apoio vergonhoso dos governos imperialistas ao Estado sionista do apartheid. Todas as atividades de boicote contra o Estado sionista e todas as formas de sabotagem das remessas de armas enviadas para Israel são atos importantes e legítimos de solidariedade.
29. Conforme mencionado acima, há uma possibilidade realista de que a Guerra de Gaza possa se transformar em uma guerra regional na qual a resistência palestina, o Hezbollah, os Houthis, as milícias pró-iranianas no Iraque e na Síria e até mesmo o próprio Irã se juntem à guerra contra Israel (que, nesse caso, provavelmente seria apoiado pelos EUA com sua marinha, força aérea e possivelmente até mesmo tropas terrestres). Portanto, isso envolveria forças que desempenham um papel reacionário em outros campos. Por exemplo, o regime iraniano oprime seu próprio povo, incluindo as minorias nacionais curdas e árabes, e o Hezbollah e as milícias pró-iranianas têm tropas na Síria que ajudam Assad a permanecer no poder.
30. Em um artigo publicado recentemente ("Táticas marxistas em guerras de caráter contraditório"), explicamos que, em períodos como o atual, os socialistas enfrentarão cada vez mais guerras de caráter contraditório. Uma guerra regional como a descrita acima seria um desses casos. Os marxistas precisam analisar concretamente a evolução de tal conflito e defender as táticas correspondentes. O caráter principal dessa guerra regional seria uma luta justa das massas palestinas e árabes, respectivamente. Forças iranianas contra um estado colonial imperialista. Nesse conflito, a CCRI defenderia a vitória militar das forças pró-palestinas e a derrota de Israel. Ao mesmo tempo, continuaríamos a apoiar a luta do povo sírio contra Assad (incluindo seus aliados, como o Hezbollah e as milícias pró-iranianas), bem como os protestos democráticos das massas iranianas contra o regime dos mulás.